Há, atualmente, uma grande controvérsia nos meios eruditos (e em algumas
instâncias não tão eruditas assim) acerca dos textos utilizados para se
comporem as traduções do Novo Testamento para o vernáculo. Liberais e
fundamentalistas digladiam-se apaixonadamente, muitas vezes sem qualquer
caridade de ambos os lados, aqueles querendo impor o Texto Crítico (TC), estes
outros defendendo o Texto Recebido (TR).
TR e TC representam duas vertentes distintas, uma tradicional (TR) e
outra moderna (TC), também chamadas, respectivamente, de Bizantina e
Alexandrina, em razão de sua origem: a Bizantina, no mundo grego, e a
Alexandrina, no Egito.
Já ouvi uns e outros dizerem, por um lado, que o TR é um texto
“abominável”, “diabólico”, e, por outro, que o TC é “maligno”, “distorcido” e
que ele “diminui” as verdades bíblicas fundamentais, entre elas, a própria
divindade de Cristo.
A bem da verdade, segundo os especialistas, ambos os textos concordam em
cerca de noventa por cento e as diferenças, em grande parte, referem-se a aspectos
secundários, que não envolvem ensinamentos cruciais. E na maioria das
ocorrências, uma verdade fundamental é omitida ou “distorcida” em alguma
passagem, mas afirmada em outra.
Por exemplo, em Mateus 1.25, as Bíblias baseadas no TC dizem que a virgem
deu à luz “um filho”, enquanto que as baseadas no TR grafam: “filho
primogênito”. É óbvio que há uma disparidade muito grande entre Jesus ser
apenas filho de Maria e ser seu filho primogênito. As consequências
para a afirmação ou não da virgindade perpétua de Maria são claras em ambos os
textos. Mas isto não quer absolutamente dizer que o TC tem deliberadamente esta
ou aquela intenção, pois o mesmo TC, em Lucas 2.7 registra: “filho primogênito”
(vide ARA e NVI, por exemplo).
Outro exemplo: 1 Timóteo 3.16. As Bíblias do TC dizem: “Aquele”,
enquanto as do TR trazem: “Deus”. A NVI, embora no texto registre “Deus”,
remete a uma nota de rodapé, que afirma: “Muitos manuscritos dizem Aquele
que”. Para os adeptos do TR, a substituição de “Deus” por “Aquele”, ou mesmo
a nota de rodapé, seriam uma ação deliberada dos revisionistas contra a
divindade de Cristo. Mas o fato é que em muitas outras passagens, o TC afirma
claramente a divindade do Senhor: Rm 9.5; Jo 1.1; Hb 1.8; 1 Jo 5.20; etc.
Pessoalmente, creio na inspiração verbal da Bíblia e na sua inerrância e
infalibilidade e estou convicto de que o Texto Recebido é a expressão exata do
que registraram em seus autógrafos os escritores do Novo Testamento, sob a
inspiração do Espírito Santo. Entretanto, não tenho muitos problemas com o
Texto Crítico e não acredito que quem lê apenas o TC deixe de ter acesso à
genuína Palavra de Deus. Explico.
É parte da história que durante alguns séculos os cristãos primitivos de
um modo geral foram privados do inteiro teor da Palavra de Deus escrita. Não
havia Bíblias como hoje; era muito difícil e caro conseguir uma cópia de algum
texto bíblico. De fato, nem mesmo havia sido definido oficialmente o cânon das
Escrituras, o que só ocorreu no Concílio de Hipona, em 393 d.C, sendo confirmado
no III Concílio de Cartago, em 397.
Mesmo assim, as pessoas se convertiam e conheciam a
Palavra de Deus. Como isso era possível? Correndo o risco de simplificar
demasiadamente a resposta, mas devido ao tempo e espaço exíguos, afirmo o
seguinte:
A Bíblia é a Palavra de Deus escrita. Os originais foram escritos em
hebraico, aramaico (VT) e grego (NT). Não obstante a inspiração do Espírito
Santo, essas línguas são humanas e não podem expressar
completamente o que Deus é, o que Deus faz e o que Deus quer. Qualquer
afirmação em língua humana acerca de Deus torna-se uma abstração, uma redução
do que Deus é, faz e quer.
Não é que as Escrituras não sejam perfeitas ou inspiradas por Deus; elas
o são! Entretanto, por estarem decodificas em linguagem humana, elas só
transmitem o que pode ser apreendido através das limitações próprias dessa
linguagem. Uma compreensão completa da Palavra de Deus requer algo mais.
É por isso que quem lê a Palavra de Deus apenas com o intelecto,
utilizando-se tão-somente das regras gramaticais, nada consegue entender. Assim
o afirma a Palavra divina: “Ora, o homem natural não compreende as
coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las,
porque elas se discernem espiritualmente. Mas o que é espiritual discerne bem
tudo, e ele de ninguém é discernido.” (1 Co 2.14-15).
Por outro lado, Jesus é a Palavra de Deus em pessoa, divina
Pessoa. Em nossa conversão, essa Palavra-Pessoa vem habitar em nós. Com
esta presença e unção, não precisamos que alguém nos ensine, pois
ela nos ensina – intuitivamente, melhor, misticamente – todas as coisas (1 Jo
2.27).
Assim sendo, de certo modo, tanto faz ler o Texto Recebido ou o Texto
Crítico, ou mesmo ser privado da leitura, por ser analfabeto ou por opressão de
algum regime político. A Palavra-Pessoa em nós – Cristo em nós – faz-nos
discernir o que é e o que não é a Palavra de Deus, pois todo o conteúdo das
Escrituras, e muito mais: aquilo que ultrapassa os limites da linguagem humana,
habita em nós através da Palavra-Pessoa. E o mesmo Espírito que é a Palavra, e
que também é Pessoa, e que inspirou a escrita da Palavra, inspira a nossa
compreensão, para que saibamos com certeza o que Deus é, o que Deus faz e o que
Deus quer.
Lembremo-nos do que disse a própria Palavra-Pessoa e que ficou
registrado como Palavra escrita: “Se vocês permanecerem em mim, e as
minhas palavras permanecerem em vocês…” (Jo 15.7). Pemaneçamos, pois.
+Bispo José Moreno
Igreja Anglicana Livre